domingo, 31 de agosto de 2008

sai de mim

Foto de Benjamim Vieira (Olhares.com)

Nunca mais acabas de partir
é um horror a tua viagem
para longe de mim
, o teu
regresso a uma vida onde
não tenho lugar, o teu
regresso a um lugar onde
não faço sentido, a tua
infinita partida, os teus
despojos por todo o lado
é um horror tu dentro de
todos os poemas.
Sarah Adamopoulos

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

...silêncio...

Foto de Miguel Pereira (Olhares.com)

(...)
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.

Luís Quintais

domingo, 24 de agosto de 2008

A fúria dos pores-do-sol

Foto de Sofia Afonso (www.olhares.pt/sofiaafonso)

Algo
frio está no ar,
uma aura de gelo
e apatia
Todo o dia construí
uma vida inteira e agora
o sol afunda-se para
a desfazer.
O horizonte sangra

e chupa o seu polegar
o pequeno polegar vermelho
desaparece.
E eu interrogo-me sobre
esta vida inteira comigo,
este sonho que estou a viver.
E podia comer o céu
como uma maçã
mas prefiro
perguntar à primeira estrela:
porque estou aqui?
porque vivo nesta casa?
quem é o responsável?
hã?

Anne Sexton

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Quando eu morrer...

Foto de Paulo S. (Olhares.com)

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós;
e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões
). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti
). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Gaivota

Foto de Sofia Afonso (www.olhares.pt/sofiaafonso)

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,

esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O’Neill

amanhã começa com a tua voz ontem

Foto de Sara Sá (olhares.com)

atravessas-me e há vozes em coro
a passear pelos arredores da pele

esqueço-me de sentir
e é com pele que te faço o centro da ferida

cuidado

a realidade é feita do que não quero ser
dias sólidos de onde não saímos

é tarde e amanhã começa com a tua voz ontem

sobre uma mesa posta (natureza morta com vento)
é tudo simples e quando o nada me acaricia os dedos
não há respostas para o que o vento pergunta

Maria

domingo, 17 de agosto de 2008

Inquietação

Foto de Paulo S. (Olhares.com)

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda


Há sempre qualquer coisa que está p’ra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
P’ra ficar pelo caminho

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está p’ra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda

José Mário Branco

"(...) E já não és senão como te sinto"

Foto de Nuno Sacramento (Olhares.com)

Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

Constantino Cavafy

sábado, 16 de agosto de 2008

Calle Principe, 25

Foto de Bigmac (Olhares.com)

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

José Tolentino Mendonça

"(...) e então cuspiste-me de corpo inteiro"

Foto de Miguel Moura (Olhares.com)

Da fossa dos teus anos te tirei do lameiro
e mergulhei-te nas águas do meu Verão
lambi-te mãos cabelo corpo inteiro
jurei ser minha e tua até mais não.

Tu deste-me a volta. Gravaste a fogo brando
a tua marca na minha pele fina.
Renunciei a mim.
E eis senão quando
me começo a afastar da minha sina

e de mim própria. A princípio ainda a recordação
um belo resto chamando por mim.
Mas nessa altura estava já dentro de ti
de mim escondida.
Bem me escondeste então.

Perdi-me toda em ti, de mim nem cheiro:
e então cuspiste-me de corpo inteiro.


Ulla Hahn

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Encomenda

Foto de Nuno Sacramento (Olhares.com)

Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê?
- como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Cecília Meireles

Saudade

Foto de Graça Loureiro (Olhares.com)

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.

Lupe Cotrim

Palavras

Foto de Elisabete Homem (Olhares.com)

Ter cuidado com as palavras,
inclusive as miraculosas.
Para as miraculosas faremos nosso melhor,
às vezes elas enxameiam como insectos
e não deixam uma picada mas um beijo.

Podem ser tão boas como os dedos.
Podem ser tão firmes como a rocha
que você finca o seu traseiro.
Mas elas podem ser também margaridas ou feridas.

Sim, sou amante das palavras.
Elas são pombas que caem do teto.
São seis laranjas sagradas pousando no meu colo.
Elas são as árvores, as pernas de verão,
e o sol, sua face apaixonada.

No entanto elas me faltam.
Tenho tantas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.
Mas as palavras não são boas o suficiente,
as incorretas me beijam.
Às vezes em vôo como uma águia
mas com as asas de uma cambaxirra.

Porém tento ter cuidado
e ser gentil com elas.
As palavras e os ovos devem ser manejados com cuidado.
Uma vez quebrados são impossíveis
de reparar.

Anne Sexton