sábado, 11 de outubro de 2008

Podia ter sido amor

Foto de Tuta (Olhares.com)

Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.

David Mourão Ferreira

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

E volto sempre a ti

(Foto de Sofia Afonso)

Estragas-me a paz.
e eu preciso das minhas solidões,
de bocados mentais sem ti.
(...)
E volto sempre a ti mesmo que não.
(...)

Ana Luísa Amaral

domingo, 31 de agosto de 2008

sai de mim

Foto de Benjamim Vieira (Olhares.com)

Nunca mais acabas de partir
é um horror a tua viagem
para longe de mim
, o teu
regresso a uma vida onde
não tenho lugar, o teu
regresso a um lugar onde
não faço sentido, a tua
infinita partida, os teus
despojos por todo o lado
é um horror tu dentro de
todos os poemas.
Sarah Adamopoulos

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

...silêncio...

Foto de Miguel Pereira (Olhares.com)

(...)
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.

Luís Quintais

domingo, 24 de agosto de 2008

A fúria dos pores-do-sol

Foto de Sofia Afonso (www.olhares.pt/sofiaafonso)

Algo
frio está no ar,
uma aura de gelo
e apatia
Todo o dia construí
uma vida inteira e agora
o sol afunda-se para
a desfazer.
O horizonte sangra

e chupa o seu polegar
o pequeno polegar vermelho
desaparece.
E eu interrogo-me sobre
esta vida inteira comigo,
este sonho que estou a viver.
E podia comer o céu
como uma maçã
mas prefiro
perguntar à primeira estrela:
porque estou aqui?
porque vivo nesta casa?
quem é o responsável?
hã?

Anne Sexton

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Quando eu morrer...

Foto de Paulo S. (Olhares.com)

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós;
e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões
). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti
). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Gaivota

Foto de Sofia Afonso (www.olhares.pt/sofiaafonso)

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,

esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O’Neill

amanhã começa com a tua voz ontem

Foto de Sara Sá (olhares.com)

atravessas-me e há vozes em coro
a passear pelos arredores da pele

esqueço-me de sentir
e é com pele que te faço o centro da ferida

cuidado

a realidade é feita do que não quero ser
dias sólidos de onde não saímos

é tarde e amanhã começa com a tua voz ontem

sobre uma mesa posta (natureza morta com vento)
é tudo simples e quando o nada me acaricia os dedos
não há respostas para o que o vento pergunta

Maria

domingo, 17 de agosto de 2008

Inquietação

Foto de Paulo S. (Olhares.com)

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda


Há sempre qualquer coisa que está p’ra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
P’ra ficar pelo caminho

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está p’ra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda

José Mário Branco

"(...) E já não és senão como te sinto"

Foto de Nuno Sacramento (Olhares.com)

Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

Constantino Cavafy

sábado, 16 de agosto de 2008

Calle Principe, 25

Foto de Bigmac (Olhares.com)

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

José Tolentino Mendonça

"(...) e então cuspiste-me de corpo inteiro"

Foto de Miguel Moura (Olhares.com)

Da fossa dos teus anos te tirei do lameiro
e mergulhei-te nas águas do meu Verão
lambi-te mãos cabelo corpo inteiro
jurei ser minha e tua até mais não.

Tu deste-me a volta. Gravaste a fogo brando
a tua marca na minha pele fina.
Renunciei a mim.
E eis senão quando
me começo a afastar da minha sina

e de mim própria. A princípio ainda a recordação
um belo resto chamando por mim.
Mas nessa altura estava já dentro de ti
de mim escondida.
Bem me escondeste então.

Perdi-me toda em ti, de mim nem cheiro:
e então cuspiste-me de corpo inteiro.


Ulla Hahn

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Encomenda

Foto de Nuno Sacramento (Olhares.com)

Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê?
- como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Cecília Meireles

Saudade

Foto de Graça Loureiro (Olhares.com)

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.

Lupe Cotrim

Palavras

Foto de Elisabete Homem (Olhares.com)

Ter cuidado com as palavras,
inclusive as miraculosas.
Para as miraculosas faremos nosso melhor,
às vezes elas enxameiam como insectos
e não deixam uma picada mas um beijo.

Podem ser tão boas como os dedos.
Podem ser tão firmes como a rocha
que você finca o seu traseiro.
Mas elas podem ser também margaridas ou feridas.

Sim, sou amante das palavras.
Elas são pombas que caem do teto.
São seis laranjas sagradas pousando no meu colo.
Elas são as árvores, as pernas de verão,
e o sol, sua face apaixonada.

No entanto elas me faltam.
Tenho tantas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.
Mas as palavras não são boas o suficiente,
as incorretas me beijam.
Às vezes em vôo como uma águia
mas com as asas de uma cambaxirra.

Porém tento ter cuidado
e ser gentil com elas.
As palavras e os ovos devem ser manejados com cuidado.
Uma vez quebrados são impossíveis
de reparar.

Anne Sexton

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Eu não existo sem você

Foto de Marta Ferreira (Olhares.com)

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim
E eu não existo sem você

Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim

Amor em paz

Foto de Pedro Olivença (1000imagens.com)

Eu amei
Eu amei, ai de mim, muito mais
Do que devia amar
E chorei
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar

Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
Encontrei em você a razão de viver
E de amar em paz
E não sofrer mais
Nunca mais
Porque o amor é a coisa mais triste
Quando se desfaz

Vinicius de Moraes

Nevoeiro

Foto de Maria Paula (1000imagens.com)

(...)
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(...)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
(...)

Fernando Pessoa

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Há palavras que nos beijam

Foto de Filipe Pombo (Olhares.com)

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

Conheci-te

Foto de Cristina Afonso (Olhares.com)

Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim é que eu fui triste
Sempre. Tu depois só me destruíste
Como os teus passos mais reais que os meus.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Príncipe

Foto de Adriane (Olhares.com)

era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
contudo
quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
mas era de noite
e por isso tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.

Ana Hatherly

As sem-razões do amor

Foto de Richard Bartz (pt.wikipedia.og)

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabe sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque te amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 8 de abril de 2008

Despedida

Foto de Sofia Afonso

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? - me perguntarão. -
Por não ter palavras, por não ter imagem.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ?
Tudo.
Que desejas ?
Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação ...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra ... )
Quero solidão.

Cecília Meireles

Soneto de separação

Foto de Jorge Casais (1000imagens.com)

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente

Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Quem és tu

Foto de Luís Pereira (Olhares.com)


Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Inconstância

Foto de Ricardo Costa (Olhares.com)

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

Florbela Espanca